24 de agosto de 2010

Só cronicando para não chorar de tristeza...


Foi hoje ao ar, na Revista Educação Pública, uma crônica que escrevi a respeito de um acontecimento ocorrido comigo numa biblioteca pública, intitulada “Quando a Filosofia mudou de... estante?!” Bem, como a melhor maneira que temos de criticar é estar junto daquilo que se critica, indo além de mero apelo judicante, morando, digamos, numa cisão que é ao mesmo acolhedora; tal crônica perpassa com certa leveza, ironia e comicidade um fato triste para nossa Educação.
Infelizmente, estamos postos à deriva quando o educar se transforma em manutenção didática, e o próprio sentido da didática se banaliza para aquilo que serve de manual de instruções. Não podemos nos esquecer de que didática, de dídasko (ensinar, instruir) se deriva em didáskalos (o que ensina), trazendo, portanto, o sentido de aprendizagem. E aprendizagem é diferente de aprendizado, na medida em que a primeira enseja uma poética da escuta, um caminho que entremeia ensinar e aprender como dinâmica circular, pois é uma conduta que se vai fazendo enquanto acontecimento. Por sua vez, o aprendizado se reporta a conhecimento já estabelecido. E o problema deste último é se estagnar como uma postura meramente erudita, que não amadurece, não se desdobrando em não saber.
Enfim, a poética da aprendizagem é a habitação da escuta, do desvelamento do que somos em cada momento de nossa passagem por nós e pelos outros, uma vez que esse outro também somos nós! Afinal, o próprio enunciado do que somos já soa em rumos de obsolescência, quando vivemos num entre ser e não ser inesgotável.
Mas para não mais nos demorarmos, agora sim, vamos à crônica:

Quando a filosofia mudou de... estante?!

Depois do café da manhã, organizo minhas coisas, meus livros espalhados por todos os lados em virtude de uma dissertação de mestrado que nasce aos trancos e solavancos de teclas digitadas. Tudo bem, tudo acertado, sem aula hoje à tarde e sem encomendas de revisão de texto: perfeito para um dia inteiro de escrita! Porém, antes, precisava passar na biblioteca e pegar alguns livros. E já que não iria à faculdade, resolvi passar na biblioteca municipal, quase ao lado de onde moro.
Minha namorada liga, os pássaros cantam, risos são cultivados... carteira, chaves no bolso – tenho que varrer esse chão depois... – e, finalmente, resolvo descer. Chego à rua, vou passando – oi, tudo bem! – e a rotina da boa convivência vai se desenvolvendo.
Passos à contramão de ideias sempre nascendo: droga porque não trouxe meu notebook – caderninho de capa preta etiquetado assim mesmo: notebook. Que legal, o primeiro notebook em que preciso virar as páginas com os dedos, genial! E, diga-se de passagem, utilíssimo! Sempre me acompanha para onde vou... Bem, quase sempre...
Viro a rua, pessoas passam – sempre passam – e, até que enfim, a biblioteca se alarga, colando-se à minha visão. Vou entrando e me deparo com um monte de livros amarrados em cima de várias mesas. Já vi tudo, não poderei levar nenhum emprestado. Seria por causa das férias escolares de meio de ano? Creio que não, pois os responsáveis pelo lugar não se equivocariam em achar que a garotada de férias não procuraria por livros... Deve ser algum calendário administrativo de urgência, reforma emergencial, sei lá... Bem, postei-me como uma contradição ambulante e, em seguida, resolvi procurar um funcionário e tirar minhas dúvidas.
Segundo as informações que ele me deu, só os livros didáticos estavam impossibilitados de consulta e, obviamente, empréstimo. Concluí que não era o meu caso. Procurava um livro do filósofo alemão Friedrich Nietzsche: Assim falava Zaratustra. Até o tenho em casa, mas uma edição barata e malcuidada. Daí, resolvi procurar outra porque acho que Nietzsche a R$ 7,00 é sacanagem!
Fui ao arquivo, remexi fichas empoeiradas, espirrei, me arrependi de coçar o nariz com as mãos sujas de poeira, mas tudo bem. Fiquei feliz quando achei a ficha do livro.
Aproveitei a oportunidade e a felicidade de uma biblioteca ao lado de casa para procurar outros livros que possivelmente precisarei. Ok, mas segundo o funcionário só poderia levar dois: escolhi quatro e, dentre esses, um seria o vencedor, ganhando como prêmio um aconchegante “em cima de alguma coisa” na minha bagunça literária! Claro, o Zaratustra já tinha lugar cativo, então, a briga seria ferrenha: Guimarães Rosa, Aristóteles, Turma da Mônica (já contei que essas revistinhas são leitura obrigatória em certos momentos de relaxamento? Um dia ainda coloco uma estante no banheiro...).
Entreguei ao funcionário os nomes dos títulos de que precisava e fiquei esperando que ele voltasse com os livros (e a revistinha!). Enquanto isso, fiquei perambulando por outras estantes, só olhando, sem me afastar muito do balcão. Daí, percebi que ele voltava e, para minha surpresa, sem um dos livros:

– Olha, esse não deu pra pegar porque é didático.
– Hum? Didático?
– Sim, esse aqui, o de filosofia.
– Então, ele é de filosofia!
– Então, é didático!
– Nietzsche? Didático?
– Não é de filosofia?
– Sim... é...
– Então, é didático!

Fiquei ainda olhando para ele. Tentando entender desde quando Nietzsche era didático. Será que perdi alguma reviravolta filosófica? Se Nietzsche era didático, será que Heidegger estaria na seção de autoajuda, procurando o Ser?
Putz, claro! Tinha esquecido de que a filosofia se tornara disciplina obrigatória nas escolas desde 2008, com idas e vindas e transfigurações políticas. Mas, na verdade, tal obrigatoriedade não é recente.
Lembremos de que em 1961, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei 4.024/61), inicia-se o processo de afastamento da filosofia, que era obrigatória desde a Proclamação da República (15 de novembro de 1889), tornando-a uma disciplina complementar. Na década de 1970, com a lei 5.692/71, a filosofia foi afastada do currículo e travestida de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil, uma piada de mau gosto em cores de fardas militares e sisudez ditatorial. Em 1998, a disciplina volta como tema transversal para, só em 2008, após a sanção da lei 11.684/08, a filosofia se tornar obrigatória no ensino médio.
Minha cabeça girou por datas e acontecimentos, recolocando a filosofia e a didática como questões a serem calmamente pensadas. Imagine: Nietzsche fragmentado em regras e cronogramas: a filosofia como matéria didática! E esse quadro só foi assim pintado porque a didática se transformou em procedimento de ensino passo a passo, ou seja, técnica pedagógica não muito funcional, ou extremamente! E a filosofia, mera contação de fatos historiográficos. Linha reta que ordena cada filósofo na fila da decoreba. Claro que o problema é muito mais profundo, e certamente não caberia nesta crônica.
Mediante essa situação, em poucas palavras e para que sejamos minimamente justos, seria necessário pensar tanto a filosofia quanto a didática no que elas podem oferecer ao aprofundamento reflexivo nas questões do humano. A travessia de uma na outra como provocação de pensamento. No entanto, se a filosofia passou a ter cunho didático, inclusive com trocas de livros para a estante desse mérito, creio que essa passagem é problemática porque não está se reconhecendo o próprio de cada uma. Em vez de, quem sabe, uma possível mutualidade implicativa de pensamento questionante, estamos assistindo à troca de rótulos sem alguns nem se darem conta desse absurdo: – Ah... o governo estipulou, a gente cumpre! O cafezinho já tá pronto?...
Isso tudo aconteceu ali, em segundos, eu postado diante do funcionário: duas estátuas se entreolhando, girando em mundos particulares. Respirei fundo, peguei os livros e ele seguiu com as atividades que fazia antes de eu chegar.
Atravessei a porta de saída e fui embora...

Ah, claro, esqueci de dizer qual o livro escolhi dentre os três (não mais quatro, já que o Zaratustra estava retido no bolo dos livros didáticos). Ainda aturdido com o acontecido, só consegui pensar em chegar à minha casa e ler: “Cebolinha e a filosofia de Sansão: assim zunia o coelho”, com a porta do banheiro devidamente trancada. Seria dessa maneira que a educação estaria sendo pensada?

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